Para que servem os limites, afinal?

O limite faz parte da existência humana, da condição de se viver em sociedade. Para conviver, crescer e aprender a criança precisa de limites, de marcas que demonstrem até onde ela pode ir com seus ímpetos de curiosidade, espírito de observação e indagações sobre o mundo. O limite é uma forma de demonstrar o quanto se acredita na capacidade de superação das frustrações como meio de crescimento e aprendizagem. Se não impusermos limites por medo de introduzir frustrações na vida das crianças, estaremos condenando-as a serem pessoas incapazes de conviver, de considerar pontos de vista divergentes e, por tudo isso, incapazes de aprender. O limite é uma forma de balizar o comportamento e refrear impulsos, que podem ser de vida (construção) ou de morte (destruição). Quando não há limite os impulsos, desordenados e sem um equilíbrio, causam insegurança, geram ansiedade e são capazes de alterar o desenvolvimento das estruturas de pensamento, pois não permitem o estabelecimento de relações estáveis, regulares e encadeadas.

Por acreditar e perceber a importância dos limites na aprendizagem das crianças, a escola se organiza a fim de trabalhar para sua construção, introduzindo atividades em que a necessidade de descentração esteja presente de acordo com o nível de desenvolvimento, a faixa etária e os objetivos de cada série. Nesse trabalho surge a necessidade de construir regras coletivas que garantam o desenvolvimento dos alunos. Existem regras, porém, que fazem parte de um contexto mais amplo de escola e já estão estabelecidas. São as regras de convivência que garantem a estabilidade emocional e social das crianças no grupo. Além disso, existem também as regras que emergem dos jogos e atividades grupais ou individuais que são construídas sistematicamente pelas crianças.

Para que elas possam ir progressivamente avançando em seu desenvolvimento sócio-moral é necessário, em determinado momento, lançar mão de sanções que garantam a apropriação de critérios de comportamento necessários para o bom andamento das atividades na escola. Assim, através de combinações explicitadas diariamente, cobradas e requisitadas por todos os segmentos da comunidade escolar é que vamos traçando metas, objetivos, superando dificuldades e construindo novos conhecimentos. A constância das ações e atitudes, nesse caso, é determinante para o alcance dos objetivos.

O objetivo da educação é a autonomia. Autonomia aqui entendida como a capacidade de governar-se a si mesmo, que é o contrário de heteronomia, como necessidade de ser governado por outra pessoa. “A autonomia como finalidade da educação requer que as crianças não sejam levadas a dizer coisas nas quais não acreditem com sinceridade.” (Kamii, Constance/1999) Assim, o que se quer é que as crianças sejam levadas e ensinadas a refletir em todas as perspectivas – lógica, moral, crítica etc. -, não repetindo, simples e heteronomamente, o que acham que o adulto quer ouvir.
Além disso, quando se fala na autonomia, como objetivo da educação, este “governar-se a si mesmo” não está isolado e descontextualizado, mas constitui-se num ser capaz de pensar por si mesmo, assumindo suas próprias ideias, as quais devem ser discutidas e confrontadas com as ideias do outro, do grupo, na busca do que seja “o melhor para todos”.

Por isso, não se forma indivíduos autônomos sem limites e sanções que levem a constantes descentrações e reflexões, com revisão dos comportamentos inadequados, se for o caso. Também são necessárias, para desenvolver a autonomia, situações em que possam praticar a cooperação, ou seja, em que todos estejam envolvidos na construção ou elaboração de algo que seja bom para todos.

Partindo desse pensamento chega-se à questão da competitividade. A competitividade é uma relação que se estabelece no grupo sempre que determinados valores como cooperação, solidariedade e colaboração não são explicitamente trabalhados nem vivenciados no cotidiano escolar. Para que isso não ocorra é necessário que a escola tome uma posição definida em relação a esse aspecto, salientando situações de coleguismo, colaboração entre os colegas e oportunizando ações coletivas que garantam o desenvolvimento de relações de igualdade, solidárias, que repudiem atitudes de competição entre as crianças, demonstrando com isso o quanto essas atitudes mais coletivas revertem para o bem estar do grupo como um todo.

Ou seja, busca-se um clima de trabalho propício para o desenvolvimento: proximidade, afeto, autoridade e organização na medida certa, com as regras da escola sendo explicadas e não simplesmente impostas aos alunos, havendo possibilidade de construí-las com eles, dependendo do caso, em termos de combinações sobre como algo vai funcionar. Mas sempre com muita atenção para o princípio de que, construídas ou explicadas, o cumprimento das regras é fundamental e, para nós, é um conteúdo a ser também trabalhado e avaliado.

Nesse sentido, as regras de convivência têm uma atenção especial cotidiana, acreditando-se que são uma construção gradual no sentido da autonomia: formas de tratamento entre as pessoas, encaminhamento de situações de conflito etc., não permitindo-se agressões físicas ou verbais ou qualquer forma de desrespeito ao outro, e incentivando e trabalhando a solidariedade e a cooperação como essenciais para se obter um clima de convivência e trabalho tranquilo na sala de aula, organizado e adequado a cada tipo de proposta.

Como ajudar as crianças a se relacionarem e ao mesmo tempo construírem conhecimentos na área do relacionamento?

Essa pergunta nos acompanha sempre que pensamos no trabalho junto às crianças. É decisivo, para a evolução do trabalho, perceber a importância das intervenções que fazemos com as crianças e como elas podem ajudar nesse desenvolvimento.

A formação de possibilidades de convivência passa necessariamente por um processo de crescimento que se dá à medida que a criança entra em contato com limites, regras, combinados e maneiras de agir. Esse contato acontece, por sua vez, em diferentes momentos da rotina escolar, o tempo todo: durante o lanche, na biblioteca, na roda de conversa, na saída e na entrada, no pátio, nos corredores, nos diversos trabalhos e atividades que realizam, nas brincadeiras etc. Nesses espaços ou situações as crianças trocam informações, ideias, posicionamentos, experiências e crenças, estando em diferentes momentos de desenvolvimento e projetos de ação. Como estão sempre descobrindo algo e fortalecendo as aprendizagens, o movimento é intenso, a ação é constante e os conflitos aparecem como contexto no qual se desenvolvem as regras, as normas e as sanções.

Esse processo depende em grande parte das intervenções do adulto. A criança precisa do adulto atento e atuante no que se refere aos encaminhamentos necessários para que entenda a necessidade e propriedade das regras. As regras definem os espaços e as possibilidades de atuação dentro dos princípios da cooperação e da justiça. A criança nesse contexto se sentirá segura para atuar respeitando e sendo respeitada.

Uma confusão muito frequente nesse assunto é sobre como se dá o processo de construção das regras ou da moralidade. Alguns adultos, inclusive professores, acreditam que as crianças para construir a autonomia devem resolver conflitos com independência, sem ajuda. É preciso entender que esse processo é complexo e que podemos até chegar a uma maior independência das crianças, mas jamais poderemos acreditar que ele acontece sem a intervenção do adulto. O adulto funciona como um mediador que apresenta, sempre que é preciso e dentro de um contexto, a necessidade das regras, as possibilidades de negociação, os encaminhamentos e ajustes a serem feitos para que todos, de alguma forma, sejam considerados ou contemplados.

Outro dilema comum nesse assunto é sobre a autoridade do adulto, que, embora seja um dos pontos mais relevantes e de influência mais decisiva nesse aprendizado, alguns pais e professores se poupam ou pensam poupar as crianças da autoridade e, com isso, fazem com que fique um vácuo entre o que as crianças podem fazer por si mesmas e o que não podem. Alguns, inclusive, acham que não devem exercer sua autoridade para não imprimir medo nas crianças. Porém o medo é um elemento construtivo, pois ele ajuda a criança no que se refere à construção do respeito, não sendo neste caso um sentimento negativo, pois está associado à preservação.

Para ilustrar essa questão analisemos a seguinte cena: duas meninas brincam no pátio de uma escola com brinquedos diversos, entre eles duas motocas; ao escutarem a professora chamar para guardar os brinquedos, pois chegava a hora de irem para a sala de aula, uma delas fala para a outra: “Vamos fazer uma corrida?” Ao mesmo tempo que fala, age, começando a brincadeira. Outro adulto presente no pátio, no momento que percebe essa ação, intervém com as meninas dizendo em tom de repreensão: “Mas como é isso? Vocês vão brincar na hora em que a professora está chamando para guardar? Não, isso não se faz, não é legal brincar na hora de guardar!” As meninas param com a brincadeira e começam a pegar as motocas para guardar, enquanto a menina que deu a ideia de fazerem a corrida fala baixinho no ouvido da colega: “A Fulana é braba, né?” O adulto que fez a intervenção escuta essa fala e, depois de terem guardado as motocas, se aproxima e retoma com as meninas a situação, mostrando a elas que existem as combinações, que ela não é braba, mas que precisou ficar assim naquele momento porque as regras não estavam sendo cumpridas e para poder ensiná-las. Diz que sempre que as crianças burlam as regras é necessário que o adulto mostre isso a elas como meio de entenderem sua importância e de participarem de maneira justa das propostas dentro do ambiente escolar. Se todos brincaram, na hora de guardar todos devem ajudar. Com essa retomada as crianças puderam perceber a necessidade das regras, entendendo que o adulto não está sempre brabo, mas se mostra desse modo conforme o contexto e a necessidade. Em nossa opinião, assim devem proceder professores e pais. A ação, no contexto em que ocorrem os conflitos ou quebras de combinados, é terreno fértil para a construção e consolidação de normas e regras de convivência.

Essas ações servirão como meio de promover o desenvolvimento de relações, nas quais as crianças estarão se apropriando das normas e daquilo que esperam dela. Esse desenvolvimento interno será tanto mais significativo, quanto mais ricas e claras forem as situações vividas no ambiente escolar e familiar. A ação do adulto que interfere positivamente nesse desenvolvimento, mostrando o que pode ou não ser feito, descoberto, realizado, é decisiva e colabora para que as crianças estejam integradas ao ambiente do qual fazem parte.

A confusão do adulto ou a falta de determinação em relação aos limites têm sido explicadas de várias maneiras. Entre as razões mais comumente citadas estão a pouca disposição dos pais em se contrapor à criança, dizendo “não” a ela, durante o pouco tempo que têm juntos, numa espécie de compensação por se sentirem ausentes. Também o receio de repetir situações autoritárias que sofreram com seus próprios pais pode imobilizar os adultos, de modo a confundirem o sentido da autoridade com o autoritarismo, ou seja, o limite sem explicação e descontextualizado. As crianças, por serem inteligentes e capazes, se desenvolvem porque estabelecem relações a partir de tudo que vivem. Assim, as normas também precisam ser explicitadas para elas a fim de que compreendam a sua necessidade. Porém, o adulto precisa perceber os limites entre dar explicações coerentes para que a criança compreenda as regras e tornar-se escravo das suas vontades. O equilíbrio entre amor e limite, atenção e determinação, regras e combinados, enfim entre todas as ações necessárias para que as crianças aprendam a conviver, é tarefa árdua e complexa, da qual pais e professores não podem abrir mão, sob pena de perderem a perspectiva de realizar sua tarefa educativa.

É melhor trabalhar em grupo ou individualmente?

O trabalho em grupo oportuniza uma troca de informações mais efetiva do que a realizada normalmente no trabalho individual. A criança exercita o repartir, o ouvir o outro e o lidar com as diferenças, percebendo a contribuição individual para o grupo e vice-versa. No trabalho em grupo os alunos podem desenvolver atitudes de cooperação nas quais os pontos de vista são equacionados no sentido de uma produção coletiva e do interesse comum. Não há a prevalência do ponto de vista individual, mas sim daquele que define as ações responsáveis pelo bom andamento do trabalho. As tarefas, no trabalho em grupo, estão divididas entre todos os seus membros, assim como a responsabilidade por realizá-las a contento. As informações, trocas e interações acontecem de modo que todos os participantes atuam, opinam e realizam aprendizagens significativas, cada um conforme suas possibilidades.

Através de propostas de trabalhos em grupo o professor pode oportunizar situações desafiadoras, que provocam nas crianças a descentração, tanto moral como intelectual, o que colabora no desenvolvimento do pensamento. As experiências de trabalhar em grupos devem iniciar desde cedo, mesmo enquanto as crianças ainda não desenvolveram totalmente a capacidade de descentrarem o pensamento, pois representam um grande potencial de desenvolvimento cognitivo, social e moral.

A escola acredita ser importante proporcionar trabalhos em grupo para que as crianças possam vivenciar situações em que a cooperação se faz necessária e nas quais estarão em contato com limitações e dificuldades inerentes a esse processo. No grupo as crianças trabalharão com essas dificuldades, explicitando seus limites e ampliando a possibilidade de superá-los.

Por outro lado, sabemos que é importante que sejam oferecidas diferentes modalidades de trabalho, contemplando diferentes objetivos a serem desenvolvidos e formas diversas de aprender. Para isso, são de extrema importância o planejamento, os estudos didáticos e as interlocuções entre os professores e com a coordenação, aprofundando e afinando o olhar do corpo docente sobre seus alunos. Essas ações garantem uma constante reflexão sobre as melhores formas de encaminhar, a cada momento, as dinâmicas da sala de aula.

No trabalho individual o aluno pode refletir isoladamente seu ponto de vista e seus conhecimentos, entrando em contato com suas limitações, expondo seus talentos individuais e expressando sensações, sentimentos e ideias. Também há aqui a possibilidade do aluno imprimir um jeito próprio ao trabalho, uma marca.

Também nessa modalidade o professor pode perceber a trajetória de cada um de seus alunos, diagnosticando o nível de desenvolvimento que cada um já alcançou, ou não, em relação a determinado conteúdo, o que permite uma intervenção mais precisa do professor junto ao aluno, levando em conta ainda os conhecimentos que possui sobre suas características individuais e de funcionamento afetivo.

Além disso, a possibilidade de realizar alguma proposta individualmente oportuniza ao aluno uma ação isolada que depende de sua atenção, determinação e dedicação em relação ao tema, à escola, à área de estudo etc., trabalhando a concentração e a responsabilidade em relação ao seu próprio aprendizado.

O trabalho em duplas também é muito utilizado na escola, especialmente em propostas que exigem um confronto de ideias mais pontual. É uma forma de garantir a interação e a troca de um jeito mais ágil do que no trabalho com um grupo de 4 crianças, por exemplo, e que tem se mostrado muito frutífera.

Leituras indicadas sobre o tema:

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Projeto – Revista de Educação – VIDA EM GRUPO – nº 11, outubro/2009.
COLES, Robert. Inteligência moral das crianças. Rio de Janeiro, Ed. Campus, 1998.
LA TAILLE, Yves de. Limites: três dimensões educacionais. São Paulo, Ed. Ática, 1999.
LA TAILLE Yves de. Formação ética – do tédio ao respeito de si. POA, Ed. Artmed, 2009.
TIBA, Içami. Disciplina, limite na medida certa. São Paulo, Ed. Gente, 1996.
ZAGURY, Tania. Sem padecer no paraíso. RJ, Ed. Record, 1991.
ZAGURY, Tania. Educar sem culpa: a gênese da ética. RJ, Ed. Record, 1999.