Beth Baldi (1)
Retomo, neste texto, algumas reflexões sobre inclusão, formuladas há um tempo atrás a partir de um curso online que realizei no Centro de Formação da Escola da Vila, tentando contribuir com a discussão que vem acontecendo na escola sobre o tema, sempre muito instigante.
Um material especialmente interessante da formação foi o texto Fundamentos para uma Educação Inclusiva, de Lino de Macedo (2), o qual, baseado em Piaget, discute sobre “dois modos de organizarmos nossa vida e nosso trabalho na escola”: pela lógica da exclusão, que se apoia na “lógica das classes”, e pela lógica da inclusão, que se define a partir da “lógica da relação”.
A primeira é uma forma de raciocínio que, no processo de busca de conhecimento, nos permite classificar por semelhança, de acordo com determinado critério, colocando os iguais, que se equivalem (substituem-se uns aos outros), em um determinado lugar, reunidos, abstraindo as diferenças e excluindo aqueles(as) que estão fora do critério. Existe uma relação de dependência em relação ao critério para estar dentro (pertinência) ou fora (exclusão), a qual se caracteriza pelo “tudo ou nada”. Antes da legislação que colocou os(as) alunos(as) com necessidades educativas especiais (NEE) nas salas de aula das escolas regulares, era pela lógica de classes que eles(as) eram excluídos, deixados(as) de fora, porque não se encaixavam no critério “escolaridade normal”, formando outra classe de pessoas ou de alunos(as). No entanto, isso não significa que classificar é ruim ou errado. Classificar é necessário para se conhecer. O problema é o uso político dessa classificação, que pode criar preconceitos e alienação.
Já a lógica das relações supõe a interação, ou seja, pensar o que quer que seja na perspectiva do outro, sendo qualquer problema de todos, num jogo de compensações, de lugares ou posições relativas, em que os termos se expressam de muitas formas e se definem um em função do outro. Diferente da classificação, a relação é reunião de coisas que fazem parte umas das outras, que valem e se definem na própria relação, fundamentando a lógica da inclusão e se caracterizando pela interdependência, a qual, por sua vez, supõe que: o que vale para uma pessoa, vale para outra, num mesmo contexto relacional, ainda que elas ocupem posições diferentes (indissociabilidade); as características de um podem ser alguma(s) parte(s) que falta(m) para a outra virar um todo (complementaridade); não somos redutíveis a critério algum, não somos simplesmente uma ou outra coisa, porque o que nos define é a relação, e somos tal coisa em função do outro (irredutibilidade). Mas também é preciso estar atento à face perversa da interdependência, que é a codependência, uma complementaridade muitas vezes doentia, caracterizada pela situação de alguém depender de outro, de seus cuidados, e esse outro também tornar-se dependente do que é cuidado, fazendo com que ele não possa sair da posição de “doente”, por exemplo.
Compreender esses fundamentos me fez reconhecer que são muitas ainda as situações em que a lógica de classes tende a estar mais presente que a lógica da relação, mesmo em escolas que já estão há algum tempo nesse movimento de se tornarem inclusivas.
É muito instigante o que o autor diz a certa altura do texto, quando compara a relação entre um alcoólatra e sua mulher com a relação professor(a)/aluno(a). Sobre a primeira situação defende que, do ponto de vista da relação, mesmo que uma pessoa da família de um alcoólatra não beba, sendo parte de um mesmo todo (a família), ela está implicada e sofre suas consequências. O mesmo na relação professor(a)/aluno(a): “Se uma criança tem dificuldades de aprendizagem ou de convivência em sala de aula, se suas limitações causam ‘problemas’ quanto aos hábitos pedagógicos do(a) professor(a) (estratégias de ensino, organização do espaço e tempo didáticos, expectativas etc.), pela lógica da classe, a dificuldade é do(a) aluno(a) e não necessariamente do(a) professor(a). Na lógica da relação, porém, o ‘problema’ é de todos, o que desafia o(a) professor(a) a refletir sobre a insuficiência de seus recursos pedagógicos, nesse novo contexto, a rever suas formas de se relacionar com os(as) alunos(as), a estudar temas que pensava nunca ter que estudar”.
E se pensarmos nas questões abrangentes do próprio currículo e da avaliação? Novamente veremos que nossas escolas, em geral, sendo seriadas, têm currículos definidos para cada ano da escolaridade e, a partir daí, os critérios de avaliação obedecem à lógica da classe, supondo que o(a) aluno(a) ou está dentro ou está fora, quer dizer, ou está aprovado(a), se aquele mínimo necessário foi cumprido, ou está reprovado(a).
A lógica da inclusão, no entanto, implica em flexibilizar os critérios de avaliação, prevendo currículos mais individualizados para alunos(as) com NEE, os quais podem supor não só níveis de aproximação diferentes aos conteúdos previstos, mas conteúdos diferentes, pensando em aspectos a serem trabalhados especificamente com determinado(a) aluno(a) (diferente em cada caso e sendo definido a partir do que vemos que ele(a) pode melhorar). Esses critérios diferenciados também decorrem de aceitarmos que os ritmos de aprendizagem são diferentes, mesmo entre os(as) alunos(as) que não têm alguma deficiência específica.
A legislação atual e, a partir dela, o trabalho nas escolas, resultados de muito estudo, esforço e luta – inclusive com a gente mesmo e nossa tendência de funcionamento dentro da lógica de classes, pela nossa própria formação -, têm registrado evoluções significativas nesse sentido.
O Atendimento Educacional Especializado (AEE), por exemplo, orientado por um(a) profissional responsável para atender os(as) alunos(as) com NEE no turno inverso ao da aula regular, uma vez por semana, em períodos determinados e numa sala especial de recursos pedagógicos e de acessibilidade, foi um grande avanço, assim como os documentos que materializam, instituem e ajudam a garantir a flexibilização necessária nos currículos e critérios de avaliação desses(as) alunos(as): o PDI/Plano de Desenvolvimento Individualizado, anual, orientador do AEE, elaborado pelo(a) profissional do setor, em colaboração com a coordenação pedagógica e os(as) professores(as) da sala de aula regular, e o CP/Currículo Personalizado, trimestral, utilizado pelo(a) professor(a) da turma regular, em consonância com o PDI, contendo os objetivos específicos para o(a) aluno(a) no período, as metodologias utilizadas, os recursos e o modelo de avaliação diferenciado. A família e os(as) especialistas de fora da escola que trabalham com a criança (se houver) recebem uma cópia do CP e, em reuniões trimestrais, discutem e avaliam o documento, sua continuidade e/ou modificações.
Essas conquistas mais recentes vêm proporcionando vivências que nos ensinam a lidar melhor com as dificuldades que se apresentam. Por um lado, nos ajudam a romper com concepções ligadas à lógica das classes que ainda carregamos, para que possamos aceitar como possível e entender a lógica que sustenta a aprovação de um aluno para o 2º, 3º ou 4º ano, sem ele estar com a alfabetização consolidada, por exemplo, sobretudo quando se trata de um(a) aluno(a) com síndrome de down (3). E por outro, nos trazem disposição e motivação para seguir buscando, em conjunto, na equipe da escola e em cooperação com outras instituições, alternativas de organização e de intervenção para atuarmos com mais efetividade junto às crianças, tanto atípicas , como típicas, e suas famílias, e aos(as) professores(as), que precisam de apoio e acompanhamento para que todos(as) os (as) alunos(as) aprendam em uma turma com diferentes demandas.
E ainda há muito a construir, pois são diversas as questões que surgem a cada momento. É preciso que estejamos atentos e buscando incorporar, cada vez mais, a lógica das relações, com uma grande disposição para as interações, o acolhimento e a cooperação, em um trabalho diversificado que contemple a todos(as).
(1) Diretora pedagógica da Escola Projeto.
(2) Professor de Psicologia do Desenvolvimento, na USP.
(3) Sabemos que a síndrome de down implica em dificuldades sérias na área da linguagem e da alfabetização, que fazem com que alguns alunos com esse problema levem muito mais tempo para completar o processo ou não consigam consolidá-lo, mesmo ao longo de vários anos de escolaridade. Não faria sentido retê-los por essa razão, sendo necessário investirmos também em outras aprendizagens para que avancem em diferentes áreas e nas suas relações sociais, não ficando “para sempre” com alunos tão pequenos como os de 1º ano, por exemplo.